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Em caso paradigmático, a 2ª turma do STJ negou provimento nesta quinta-feira, 18, a recurso da GOL contra acórdão que julgou procedente ACP por falhas no fornecimento de serviços de transporte aéreo, condenando-a à abstenção de cancelamento de voos, salvo se houver razões técnicas relevantes e intransponíveis que o justifique.

O colegiado seguiu à unanimidade o voto do relator, ministro Humberto Martins, que fixou importantes teses em relação ao transporte aéreo no país, juntamente com os acréscimos feitos pelo ministro Herman Benjamin.

A ACP foi proposta pelo MP/AC, em decorrência de cancelamentos consecutivos de voos na comarca de Cruzeiro do Sul. O acórdão do TJ/AC, mantido na íntegra pela turma de Direito Público, fixou:

(i) Em razão dos constantes cancelamentos de voos suportados pelos habitantes da Comarca de Cruzeiro do Sul, os substituídos processuais têm a necessidade de uma tutela inibitória, eficaz para que a concessionária seja definitivamente proibida de realizar tal prática indiscriminadamente, razão pela qual é forçoso a rejeição desta preliminar.

(ii) Não há interesse (jurídico ou econômico) da ANAC nesta Ação Civil Pública.

(iii) Os serviços públicos também estão sujeitos às regras do CDC, mormente no caso concreto em que o Ministério Público, assumindo a posição de verdadeiro substituto processual de uma categoria inteira de consumidores, pediu do Estado-juiz a tutela de direitos individuais e homogêneos, flagrantemente violados por descontinuidade na prestação de serviços de transporte aéreo na Comarca de Cruzeiro do Sul. Sucede que o transporte aéreo cuida-se, inequivocamente, de um serviço público prestado pela Apelante na modalidade de concessão, de modo que, do ponto de vista dos usuários, a concessionária mantém relação jurídica de natureza consumerista, tutelada pelas disposições protetivas do CDC.

(iv) Não obstante a concessionária de serviço público se encontrar diretamente subordinada aos regulamentos expedidos pela ANAC, ela também está vinculada às normas do CDC. Significa isso que, embora a ANAC venha a autorizar os comentados cancelamentos, a referida concessionária pode ser responsabilizada pela descontinuidade na prestação de serviço público essencial, resultante de violação frontal aos preceitos contidos no CDC.

Em parecer pela rejeição do recurso da GOL, o MPF considerou correta a decisão do tribunal, já que o parquet agiu de forma exemplar ao tutelar os direitos coletivos da população afetada. Para o MPF, cancelar voos por motivos econômicos é um desrespeito ao consumidor, agravado pelo fato de, em muitos casos, não existir nenhum tipo de comunicação ou orientação aos passageiros sobre o cancelamento.

A questão é séria. Não há justificativa para não oferecer um produto que foi vendido. É uma pena que ainda temos que discutir esse tipo de assunto, já que é uma obrigação implícita que não deveria ser contestada”, argumentou o subprocurador da República Brasilino Pereira dos Santos.

Voto do ministro Humberto

Levado o caso para apreciação da egrégia turma do STJ, o ministro Humberto Martins proferiu sensível e elogiadíssimo voto no qual assentou conceitos importantes em relação à aplicação doCDC no setor aéreo, o direito à informação clara e correta do consumidor e a prática abusiva das companhias ao cancelarem voos. Confira os principais trechos:

O Código de Defesa do Consumidor não prejudica as normas do setor aéreo brasileiro.”

O direito à informação é garantia fundamental da pessoa humana. A autodeterminação do consumidor depende essencialmente da informação que lhe é transmitida. Se a informação é adequada, o consumidor age com mais consciência. Se é falsa ou omissa, retira-lhe a liberdade de escolha.”

O dever de informar também deriva do respeito aos direitos básicos do consumidor. Mais do que obrigação decorrente de lei, o dever de informar é forma de cooperação, uma necessidade social.”

Ao cuidar da oferta nas práticas comerciais, o Código de Defesa do Consumidor evidencia o dever de informar (art 31). As infrações às relações de consumo são constantes, porque para o fornecedor lamentavelmente o custo do dano será menor que o lucro obtido.”

O ministro Humberto lembrou que os cancelamentos sistemáticos e consecutivos em Cruzeiro do Sul não foram previamente informados aos consumidores, os quais tiveram suas viagens subitamente frustradas, mormente por residirem em cidade de difícil acesso terrestre e fluvial.

S. Exa. fez referência à dificuldade que o cidadão enfrenta no do dia a dia para remarcar e alterar as passagens. “Que violência, que abuso ao consumidor!”.

A GOL alegou que a obrigação determinada no acórdão seria perpétua, ao que Humberto respondeu no voto que, embora não caiba ao Judiciário determinar a realização de voos perenes para esta ou aquela cidade, “cabe sim ao Judiciário determinar o cumprimento do contrato de concessão celebrado entre o poder concedente e a concessionária. E foi isso que as instâncias ordinárias estabeleceram. Também cabe ao Judiciário zelar pelo cumprimento de contratos entre a companhia aérea – concessionária de serviço público – e os consumidores”.

Consignando que o CDC contempla um microssistema próprio e flexível, o relator destacou o ineditismo da matéria debatida, salientando que servirá de base para “que abusos ou outras afrontas não sejam trazidas contrárias ao entendimento e ao bom respeito à cidadania”.

Voto do ministro Herman

Próximo a votar, o ministro Herman Benjaminacompanhou integralmente o relator, destacando as teses fixadas no voto de S. Exa – (i) inexistência do litisconsórcio necessário nas ACPs ou individuais propostas contra prestadores de serviço mediante concessão; (ii) o transporte aéreo é serviço essencial para fins de aplicação do art. 22 do CDC; (iii) a malha aprovada pela Anac é uma oferta e por isso deve ser cumprida. Ao não cumprir essa obrigação, há violação do artigo 30 e 31 do CDC; (iv) prática abusiva conforme o artigo 39 do CDC.

Destacam-se os seguintes trechos do voto do ministro Herman:

Nunca tivemos a oportunidade de dar o veredicto do STJ sobre essas práticas abusivas, corriqueiras que ocorre no Brasil inteiro e não apenas com a GOL. A questão é mais grave aqui porque estamos tratando de uma cidade que contava, em 2009, com apenas esses voos, de uma única companhia aérea. E sabemos que é cidade que boa parte do ano tem a sua estrada de ligação a Rio Branco interditada.”

A regra é que o órgão regulador só é chamado de forma excepcional. Se fosse assim, todas as ações, e são centenas de milhares de ações, inclusive nos Juizados Especiais, em razão de telefonia, de água, de eletricidade, teríamos que chamar os órgãos estaduais ou federais de regulação. Acabaria a competência da Justiça estadual.”

Diria até que numa circunstância como essa, de Cruzeiro do Sul, o serviço de transporte aéreo não é essencial, é essencialíssimo, uma categoria que o Código não previu, mas igual a categoria do hipervulnerável. Evidentemente que daí saem consequências desta tese. Se são essenciais, são contínuos. Contínuo não quer dizer eterno. O Poder Judiciário não pode ser o gestor da malha viária do Brasil. Não pode e não quer. Mas é gestor das obrigações e dos direitos decorrentes da malha viária estabelecida pela Anac, e pode também verificar precisamente se a Anac, como órgão de Estado, está cumprindo com seus deveres de regulação ou se transformou em órgão capturado pelo regulados.”

A oferta e a violação à essa oferta pública não é apenas para os consumidores que concretamente foram lesados (que queriam voar naquela data ou compraram o bilhete), mas é violação à oferta feita a 60, 80 mil habitantes de Cruzeiro do Sul. Naquele artigo 22, parágrafo único, quando se fala em danos, são danos materiais e morais. E como já estabelecemos nesta turma os danos morais podem ser coletivos. E serão danos morais para 80 mil habitantes.”

Tudo isso caracteriza também prática abusiva conforme o artigo 39 do CDC. A lista do artigo 39 é exemplificativa. Há prática mais abusiva do que a empresa negar cumprimento àquilo que assumiu com o Poder Público em relação a 80 mil pessoas? É uma prática a ser reprimida pelo Judiciário o cancelamento e suspensão de voo sem informar corretamente o consumidor a razão para tanto. E tem que ser por escrito. O consumidor fica absolutamente desprotegido. E portanto essa última tese é de que é prática abusiva não informar o consumidor a razão para tanto por escrito, indicando de forma completa, explicando o consumidor exatamente o que ocorreu. Não há problema nenhum em dizer “o voo está sendo cancelado porque não há teto em Manaus”. Por que não informar isso ao consumidor? Aliás o único sujeito que detém essa informação é a empresa.”

A presidente da 2ª turma, ministra Assusete Magalhães, ao acompanhar integralmente o relator, narrou experiência pessoal em relação aos constantes cancelamentos de voos nos Estados do norte do país, quando corregedora, e classificou de didático e paradigmático o julgamento, destacando, entre outros, o fato de que o transporte aéreo, enquanto serviço essencial, deve ter por força do CDC continuidade na prestação.

Completou a votação, garantindo decisão unânime, a desembargadora convocada Diva Malerbi, também aderindo integralmente ao voto de Humberto Martins, cujo entendimento será aplicado em todo o país, independentemente da cidade ou da companhia aérea.

Fonte: Migalhas

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