A LINDB e a responsabilização por dano ao erário pelo TCU

Decisão recente exige demonstração de culpa grave para imposição de débito a gestor público

O Acórdão 1460/2025-Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), relatado pelo ministro Bruno Dantas, traz um importante precedente sobre os limites da responsabilização financeira de agentes públicos por dano ao erário. O processo trata de um recurso de revisão interposto pelo ex-prefeito de São José dos Pinhais (PR) contra o Acórdão 7.790/2018-2ª Câmara, o qual, após recursos e reexames, só veio a ser publicado em 2022.

A origem da controvérsia está na Tomada de Contas Especial instaurada em razão de supostas irregularidades na contratação emergencial de serviços na área da saúde, com recursos do Fundo Nacional de Saúde. O recorrente foi responsabilizado solidariamente a ressarcir os cofres do fundo por diversos débitos decorrentes de sobrepreço e ausência de comprovação dos serviços, bem como multado individualmente em R$ 500 mil.

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Dentre os pontos trazidos em seu recurso, o gestor alegou que apenas homologou processo de compra cujo superfaturamento era de difícil percepção para o homem médio. Assim, asseverou estar sendo responsabilizado de forma objetiva, o que seria incompatível com a redação do art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que estabelece que agentes públicos só serão responsabilizados em caso de dolo ou erro grosseiro.

O conceito de erro grosseiro foi definido no Acórdão 1628/2018-TCU-Plenário como aquele decorrente de conduta culposa do agente que se afasta do parâmetro do “administrador médio” adotado pela Corte de Contas. Já no Acórdão 2391/2018-TCU-Plenário, também de relatoria do ministro Benjamin Zymler, definiu-se erro grosseiro como aquele “que poderia ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal”.

Essa formulação, no entanto, suscita uma crítica relevante: o TCU buscou delimitar um conceito jurídico indeterminado (erro grosseiro) por meio de outro termo igualmente indefinido (“administrador médio”). Afinal, o que seria esse “administrador médio”?

De todo modo, neste caso, a unidade técnica rechaçou o argumento do ex-prefeito e afirmou que a regra prevista no art. 28 da LINDB não se aplica à responsabilidade financeira por dano ao erário. A unidade técnica cita que a jurisprudência do TCU se consolidou no sentido de que “o dever de indenizar prejuízos aos cofres públicos permanece sujeito à comprovação de dolo ou culpa, sem qualquer gradação, tendo em vista o tratamento constitucional dado à matéria (art. 37, § 6º, da Constituição Federal)”. Opinou, desse modo, pelo desprovimento do recurso e manutenção da condenação, pelo que foi acompanhada pelo Ministério Público junto ao TCU.

Contudo, no julgamento do recurso de revisão, ocorrido em 02/07/2025, o ministro relator Bruno Dantas decidiu dar provimento ao recurso de revisão, destacando que “a suposta irregularidade não era de óbvia e imediata percepção pelo gestor municipal”. Segundo o ministro, seria inviável exigir de um homem médio, especialmente de um gestor político, a reanálise pormenorizada de cálculos e percentuais de BDI elaborados e validados por setores especializados da administração.

É nesse aspecto que o acórdão se mostra relevante: o relator acolheu o argumento do recorrente de que os defeitos identificados nos contratos (como falhas na composição do BDI ou encargos sociais) eram de difícil percepção e que o gestor agiu confiando na legalidade dos pareceres e procedimentos administrativos. Assim, o voto afasta a imputação de débito e a multa, determinando o arquivamento do feito com julgamento das contas como regulares com ressalvas.

Em palavras precisas, o ministro Bruno Dantas afasta a responsabilidade financeira do gestor diante da ausência de dolo ou erro grosseiro em sua conduta. O voto cita expressamente que a tese de que o art. 28 da LINDB não se aplicaria aos casos de dano ao erário deveria ser ponderada à luz da evolução jurisprudencial do TCU, defendendo que “obrigação primária de ressarcir o dano recai sobre quem foi indevidamente beneficiado.”

Essa posição contrasta com o entendimento predominante no TCU, especialmente consolidado no Acórdão 1958/2022-Plenário, de relatoria do ministro Benjamin Zymler. Naquela ocasião, o TCU sustentou que a responsabilização por dano ao erário decorre da ocorrência de dano, nexo causal e culpa lato sensu, sem necessidade de dolo ou erro grosseiro.

Mais recentemente, esse mesmo posicionamento foi reafirmado em outros julgados[1], que destacaram que a responsabilização do agente público por dano ao erário ocorre mesmo na ausência de dolo, má-fé ou beneficiamento indevido, sendo suficiente a identificação da irregularidade e da conduta do agente, mesmo que caracterizada culpa por negligência, imprudência ou imperícia.

Como se percebe, o TCU vinha aplicando o entendimento de que o art. 28 da LINDB não poderia limitar a responsabilização por dano ao erário, invocando o § 6º do art. 37 da Constituição Federal, que prevê a obrigação de reparação sempre que presente a “culpabilidade” do agente público, independentemente do grau de culpa.

Com isso, sedimentou-se a tese de que o ressarcimento ao erário se sujeitaria a um regime próprio, desvinculado da exigência de dolo ou erro grosseiro. Essa cisão – entre responsabilização sancionatória e ressarcitória – resultou em um esvaziamento prático da LINDB: o agente público seguia sendo responsabilizado, ainda que de forma “não punitiva”, por falhas meramente técnicas, formais ou administrativas, sendo obrigado a ressarcir o dano apurado.

A decisão proferida no Acórdão 1460/2025-Plenário, desse modo, pode representar o início de uma inflexão jurisprudencial no âmbito do TCU, com o reconhecimento de que o art. 28 da LINDB se aplica também às hipóteses de responsabilização financeira por dano ao erário. Caso se consolide, esse entendimento significará a superação de uma resistência institucional duradoura por parte do órgão de controle, que fez lobby explícito contra a sanção presidencial da LINDB em 2018.

Para além disso, poderá provocar um novo ciclo de recursos de revisão fundados no art. 28 da LINDB, redirecionando o foco da análise para o elemento subjetivo da conduta do gestor. Ao mesmo tempo, imporá ao TCU o desafio de uniformizar sua jurisprudência, especialmente nas Câmaras, onde ainda prevalece a responsabilização por culpa em stricto sensu.

Enquanto isso, o Acórdão 1460/2025-Plenário se afirma como um precedente relevante e uma oportunidade para reflexão institucional sobre os parâmetros de responsabilização na atuação dos Tribunais de Contas. Sobretudo, ao assumir que nem toda falha técnica é passível de responsabilização, mas sim os atos praticados com má-fé ou grave desatenção.

Esse movimento de maior rigor na responsabilização do gestor público também dialoga com as recentes alterações na Lei de Improbidade Administrativa, promovidas pela Lei 14.230/2021, que passou a exigir dolo específico[2] como condição para responsabilização por ato ímprobo. Embora se trate de regime jurídico distinto, a alteração legislativa reforça uma diretriz normativa comum: a de que o agente público não pode ser responsabilizado por agir com boa-fé dentro da margem de discricionariedade técnica ou administrativa que a lei lhe confere.


[1] Ver Acórdão 3503/2025-1ª Câmara, de 03/06/2025 (Ministro Jhonatan de Jesus), Acórdão 3524/2025-1ª Câmara, de 03/06/2025 (Ministro Weder de Oliveira) e Acórdão 4104/2025-2ª Câmara, de 15/07/2025 (Ministro Augusto Nardes).

[2] Vale relembrar que o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento, no julgamento do tema 1.199 da repercussão geral, de que é necessária a comprovação do dolo específico para a caracterização do ato ímprobo após a publicação da Lei 14.230/2021.

FONTE: JOTA

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